sexta-feira, 12 de junho de 2015

Fé, ciência, tecnologia e filosofia

Agora (2009)

Quando abro o rádio, jorram anúncios; quando abro a torneira, jorra água. Se amanhã a torneira jorrasse anúncios, a minha reação seria surpresa. Vivo em expectativa constante: espero constantemente que torneiras jorrem água, pura água, toda a água, e nada mais que água. Essa minha expectativa não é confirmada pela experiência que meus sentidos fornecem. Torneiras jorram água suja, ou pouca água, ou nada. Mas a evidência dos meus sentidos não destrói a minha fé nas torneiras. "Explicam" o comportamento das torneiras por fatores externos, como a hipótese da falta de chuva, ou a hipótese do encanador, ou a hipótese da Municipalidade. Essas hipóteses "provam" que, eliminados os fatores externos, torneiras jorram água. A evidência dos meus sentidos, embora prima facie contrária à minha fé nas torneiras, fortalece, em virtude das hipóteses, a minha expectativa de água. Pois é este exatamente o caráter da fé: é uma esperança que transforma evidência contrária em prova. 
Mas o caso da torneira jorradora de anúncios seria diferente. Seria, não o inesperado, mas o inesperável. Causaria surpresa. Poderei superar essa surpresa com hipóteses ousadas. Pela hipótese da alucinação, ou pela hipótese do rádio portátil escondido na torneira, por exemplo. Mas, por um instante pelo menos, a minha fé ficará abalada. 
Casos como o da torneira jorradora de anúncios ocorrem. Antigamente eram chamados limagres. Hipóteses ousadas reintegravam os milagres no tecido da fé, a qual continuava fortalecida por eles. "Das Wunder ist des Glaubens shoenstes Kind" (o milagre é o filho mais belo da fé) diz Goethe. Tão forte era a fé, que os antigos esperavam pelo inesperável, pelo milagre. Atualmene, embora continuem ocorrendo casos surpreendentes, não ocorrem milagres. Evoluímos um mecanismo que sufoca automaticamente surpresas. É o mecanismo do "faça-de-conta". Quando algo inesperável ocorre, fazemos de conta que era esperado. É graças a este mecanismo que nada nos surpreende. Tudo é corriqueiro. Torneiras jorradoras de anúncios: nada mais corriqueiro, nada mais banal que isto. 
Que ocorram. O choque de surpresa que causarão não passará de vestígio de uma ingenuidade superada. A tese do presente artigo será que este nosso mecanismo é sintoma de fé profunda. Que somos uma época que espera por milagres. E que nossa fé na torneira é parte da nossa fé fundamental na tecnologia. De uma esperança portanto que é fortalecida por evidências contrárias, e que cresce com torneiras jorradoras de anúncios, com milagres portanto. 
Se digo: "Amanhã nascerá, em vez de sol, um queijo de Minas para iluminar a Terra", terei dito uma absuridade. Mas se digo: "Ontem nasceu um queijo de Minas e iluminou a Terra", e se milhares confirmarem esta minha observação, terei articulado uma banalidade. É óbvio que o queijo de Minas nasceu. As teorias astronômicas esperavam pelo nascer do Sol, mas essas teorias são apenas sistemas hipotéticos incompletos. Comportam uma reformulação progressiva. Se reformuladas à luz dos acontecimentos de ontem, provam essas teorias que o nascer do queijo de Minas era um acontencimento necessário, ou, pelo menos, altamente provável. O queijo de Minas, longe de abalar a astronomia, prova, pelo contrário, a eficiência do método científico como captação da "realidade". Todo fenômeno novo se enquadra nesse método por simples modificação da teoria. Esta é, a meu ver, a forma como funciona a fé  na atualidade. 
É a fé na coincidência do pensamento de um determinado tipo com o mundo que nos cerca. O primeiro artigo dessa fé reza: "O pensamento lógico coincide com a realidade". O segundo artigo reza: "A expressão mais perfeita do pensamento lógico são enunciados da matemática pura". O credo conclui: "A realidade tem a estrutura da matemática pura". Isto não é, como parece, racionalismo puro.A tecnologia prova, empiricamente, qu enossa fé é a fé verdadeira. Nossas máquinas e nossos instrumentos são fé aplicada, são "obras" no significado teológico do termo. E nossas máquinas e instrumentos funcionam. "Provam" nossa fé empiricamente. Funcionam como funciona, por exemplo, a torneira. Jorram água, e isto prova, também, que nossa fé é verdadeira. Ou jorram anúncios, e isto prova, de maneira concludente, que nossa fé é verdadeira. Nossa fé tem um aspecto racional, e um aspecto empírico: é uma fé completa. 
A coincidência entre pensamento lógico e "realidade" é incrível. Não pode ser acreditada. Nossa vivência do mundo a desmente a todo passo. No entanto, nossa fé aceita essa coincidência como fato indubitável. É uma fé autêntica, porque crê quia absurdum. Mas ao dizer que a coincidência é incrível, coloquei o presente argumento em terreno estranho à fé da atualidade. A "nossa" fé não é a fé do presente argumento. Como consegui essa ironia? Evidentemente porque nossa fé permite, em seu estágio atual, que seja abandonada. Abriu fendas. Por uma dessas fendas escapou-lhe o presente argumento. Uma fé que abre fendas é uma moradia incômoda e perigosa. É incômoda, porque ventos gélidos invadem os seus aposentos e fazem tremer os que nela se abrigam. E é perigosa, porque ameaça ruir e soterrar os habitantes em sua ruína. Duas são as possibilidades que uma situação destas oferece: método pelo qual o pensamento se agarra às coisas para modificá-las. 
O próprio êxito desses dois métodos (que é o triunfo do Ocidente) e também, a meu ver, o começo do fim da Idade Moderna, e, talvez, por isto mesmo, o começo do fim do Ocidente. Porque o conhecimento do mundo dos corpos que a ciência proporciona ao pensamento revela progressivamente a dubiedade desse mesmo mundo, e a modificação nele operada pela tecnologia é portanto fútil. 
Em outras palavras: as conquistas epistemológicas e éticas do pensamento ocidental em seu avanço contra o mundo dos corpos revelam progressivamente que falta, a esses métodos, o concursus Dei. Há algo fundamentalmente errado na visão cartesiana da qual brotaram. Se a física moderna revela progressivamente e de muitas maneiras que o fundamento da matéria é o pensamento, já que os elementos da metéria se revelam como sendo mais símboos do pensamento que outra coisa (nêutrons, mésons etc), e já que em certos processos fundamentais não é possível fazer-se a distinção entre observador e observado, isto é, entre sujeito e objeto, há algo errado na física como método do conhecimento.E se a tecnologia modificou o mundo dosc orpos a ponto de tornar perfeitamente imaginável um estágio de fartura e de lazer, sem que com isto diminua a angústia e o tédio humano, há algo errado na tecnologia como busca de felicidade. Esse erro fundamental devemos buscá-lo, ao meu ver, no conceito do pensamento tal como foi projetado pela visão cartesiana, e realizado pelo Ocidente no curso da Idade Moderna.
A dicotomia que Descartes estabelece entre matéria e pensamento, entre corpo e alma, entre o duvidoso e o indubitável, é, ao meu ver, uma dicotomia nefasta. Mas confesso ser ela de superação muito difícil. Porqu eessa dicotomia, longe de ter surgido no sistema cartesiano, já está contida nos mitos primordiais que deram origem à civilização ocidental e que encontrram a sua experssão ritualizada no cristianismo. 
Descartes não passa, deste ponto de vista, de uma explicação do cristianismo. Já o cristianismo distingue, para falarmos com Vicente Ferreira da Silva, entre o salvável (que é a alma) e o sacrificável (que é o corpo). A dicotomia pensamento-matéria não é portanto fruto de uma distinção epistemológica, como parece ser se formos considerar a partir de Descartes, mas é fruto de todo um conjunto ético-religioso do qual participamos. Já que fomos projetados por esse conjunto, já que existimos nele e graças a ele, é tremendamente difícil imaginarmos outro projeto existencial, no qual a nefasta divisão matéria-espírito não seria o caso. Embora saibamos de outras civilizações, como a indiana (que desconhece a divisão a ponto de conceber espíritos materializados), e de culturas chamadas "primitivas" (que vivem em mundos pré-lógicos, isto é, anteriores a essa divisão), é-nos impossível sorvermos existencialmente esses projetos alheios ao nosso. 
Mas é necessário pelo menos tentarmos esse salto para fora do nosso projeto, se é que tenho alguma razão ao afirmar que a divisão matéria-pensamento ameaça a nossa civilização com o mergulho no abismo do tédio e da futilidade, justamente pelo êxito da ciência e da tecnologia. E creio ser possível esse salto, até certo ponto. Não pelo ultrapassar do nosso projeto, mas graças ao poder reflexivo do qual dispomos e o qual nos poderá conduzir até perto das nossas origens, daquelas origens nas quais se deu, in illo tempore, a divisão entre pensamento e matéria, entre alma e corpo. A reflexão, portanto, para a qual convido os senhores, deve conduzir-nos até aquele ponto (para recorrer a um mito) no qual se deu a expulsão do paraíso, isto é, a alienação que é o nosso pensamento. 
Que poder é esse, que acabo de mencionar e que chamei de reflexivo? Para iluminá-lo, voltemos por um instante a considerar o processo do pensamento tal como o descrevi há pouco. Disse que o pensamento se precipita sobre os corpos para compreendê-los, e que se agarra a eles para modificá-los. O pensamento é portanto um processo explosivo que se expande para dentro do mundo dos corpos para devorá-los. O método desse devorar é a ciência e a tecnologia. Mas existe outro movimento do pensamento, um movimento oposto. Nesse movimento contrário o pensamento se vira contra si mesmo para compreender e devorar-se a si mesmo. A palavra "reflexão" indica a direção desse movimento, já que denota um recuo em direção oposto ao avanço. A palavra correspondente alemã "Nachdenken" (pensar atrás ou depois) indica a função desse movimento, já que denota controle. 
E a palavra correspondente tcheca "rozmyslení" (pensar analítico) indica o resultado desse movimento, já que denota a decomposição do pensamento. A reflexão é portanto o movimento inverso do pensamento, que o controla e o decompõe em seus elementos. O método esse compreender-se e modificar-se do pensamento é a filosofia. A filosofia é portanto exatamente o contrário da ciência e da tecnologia. As tentativas empreendidas de diversos lados, por exemplo pelos marxistas, por Dilthey e por Husserl, de tornar científica a filosofia, denotam, ao meu ver, uma incompreensão total do processo do pensamento. Se afirmei que, em nossa tentativa de evitar a queda da nossa civilização no abismo do tédio e da futilidade, devemos recorrer à reflexão, tinha eu em mente exatamente essa oposição entre filosofia de um lado, e ciência e tecnologia do outro. Não é com mais ciência e mais tecnologia que sairemos da situação angustiada na qual nos encontramos mas com mais filosofia (se é que sairemos). É verdade que na descrição que acabo de lhes oferecer a ciência e a tecnologia aparecem como tendências progressivas do pensamento, e a filosofia como a sua tendência regressiva. E é verdade que a grande maioria continua valorizando positivamente o progresso como herança dos dois séculos passados e a despeito de muitos sintomas inquietantes. Mas existem situações, reconhecidas mesmo por aqueles que põem sua fé no progresso, nas quais uma expansão excessiva exige um recuo para consolidação e descanso. Creio que devemos caracterizar assim a nossa situação, mesmo se formos otimistas. A minha proposta de substituirmos a ciência e a tecnologia pela filosofia pode ser portanto encarada como um réculer pour mieux sauter mesmo por aqueles que não crêem, como eu, estar o nosso progresso dirigido rumo ao abismo. 
Disse que a reflexão metódica, a filosofia portanto, deve conduzir-nos até perto das nossas origens, em profundidades portanto que caracterizei pelo mito da expulsão do paraíso. Esse mito nos conta, conforme creio, em sua linguagem densa e poética, que caracteriza todo mito, o mistério do surgir do pensamento. Conta-nos esse mito que fomos expulsos e lançados para cá porque comemos do fruto proibido da distinção entre o bem e o mal, do fruto da divisão e da dúvida portanto. Modernizando um pouco, poderei chamar esse fruto de "antimescalina". A expulsão do paraíso, o qual pode ser descrito como o estado da não-divisão e da não-dúvida, a expulsão para cá, que pode ser descrito como o estado da divisão e da dúvida, não é um acontecimento do passado histórico remoto, mas é um acontecimento mítico, isto é, um acontecimento que a todos nós aconteceu e sempre acontece de novo. Estamos sendo expulsos do paraíso toda vez que distinguimos, toda vez que duvidamos. Aliás, duvidar é sinônimo de distinguir e de estar expulso, já que etimologicamente parente de dividir e de dois. Em alemão isto se torna ainda mais claro, já que "zweifeln" (duvidar) conduz ao "verzweifeln" (perduvidar), isto é, ao desespero. A nossa expulsão desesperada do paraíso é portanto a própria dúvida, que é por sua vez um distinguir, um dividir, um ordenar portanto. 
Fomos expulsos do paraíso em direção da ordem e do progresso. Deixamos para trás, sem esperança, o caos da indistinção e da ingenuidade, e estamos sendo lançados, impiedosamente, em direção do cosmos da clareza distinta, que é, como diz o mito, a morte. Esta me parece ser a mensagem do mito, que foi reformulada, em sua versão mais moderna, por Heidegger na frase: "fomos lançados para cá e estamos aqui para a morte". Mas esse duvidar, que é um distinguir e ordenar, e que o mito chama de expulsão, esse duvidar é o próprio pensamento. Com efeito, duvidar e pensar são sinônimos, e Descartes é, todo ele, resultado desse sinonimato.A coisa pensante cartesiana é indubitável, justamente porque ela é a coisa que duvida. De acordo com Descartes a dúvida não pode duvidar de si mesma. A dúvida, portanto o pensamento, distingue e ordena o duvidoso, submete o duvidoso a uma ordem, a fim de que o duvidoso deixe de sê-lo e se torne indubitável. O pensamento é portanto um processo absurdo. Duvida para deixar de duvidar, e transforma, nessa tentativa, o duvidoso em dúvida. O processo é absurdo em dois aspectos: é absurdo porque a meta do pensamento é acabar consigo mesmo, e é absurdo porque o pensamento pretende alcançar essa meta pela transformação de tudo em dúvida. O pensamento em sua absurdidade é comparável à sede que pretende matar-se bebendo o mar: porque é absurdo querer beber o mar, e porque com cada gota bebida a sede aumenta. Quanto mais progride o pensamento, tanto mais evidente se torna a sua absuridade dupla, tanto mais evidente se torna ser o pensamento a expulsão do paraíso.

Vilém Flusser. Da religiosidade. A literatura e o senso de realidade. São Paulo, Editora Escrituras, 2002 

Um comentário:

  1. Lidia, é muito bom seu blog moça, dou sempre uma passada aqui pra t ler

    abs
    fellini?

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