terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Sombras, sonhos e o inconsciente em James Hillman

Depois de ter lido A terrible love of war, de James Hillman, passei a gostar bastante das ideias dele, especialmente também porque ele é um pós-junguiano. Então, na última feira do livro na USP, dando uma olhada aleatória na mesa da editora Paulus, descobri esse livrinho de menos de 140 páginas chamado Uma busca interior em psicologia e religião. Eu não entendi direito pelo título o que eu encontraria e, nas primeiras páginas, fiquei em dúvida se aquilo se tratava de um manual para terapeutas e pastores que orientam a comunidade ou se o livro também não era algo até meio autoajuda. Acredito que não seja nem um e nem outro, mas a escrita de Hillman é bem mais didática e próxima ao leitor do que a de Jung, por isso talvez passe essa última ideia.

A aproximação básica dele, até então (estou entrando no terceiro e penúltimo capítulo), é abordar as conexões e disparidades entre religião e psicologia, bem como discutir o que é o inconsciente e como ambas as áreas trabalham essa questão. As citações que separei vêm do segundo capítulo, no qual o autor trata da existência do inconsciente, suas características e o sonho como uma manifestação do mesmo. Nesse sentido, encontrei pontos com os quais eu trabalhei na minha dissertação, como a noção de um outro em mim mesmo, que é a sombra/inconsciente, e como trabalhar com isso (chegando a usar a metáfora alquímica). 

Esses trechos, para mim, foram alguns dos mais elucidativos e interessantes do segundo capítulo (Vida interior: o inconsciente enquanto experiência) e a primeira página do terceiro (A escuridão interior: o inconsciente enquanto problema moral). Por esse motivo, é possível que eu retorne com uma continuação desse post, com mais citações do terceiro capítulo.

 Pela emoção temos a percepção de não estar sozinhos em nosso interior, de não nos controlar totalmente, de que existe uma outra pessoa (mesmo que seja apenas um complexo consciente) que também tem alguma coisa (e frequentemente não pouca) a dizer quanto ao nosso comportamento. Assim, o encontro da alma por meio do inconsciente também é mais uma descoberta na qual tropeçamos. Caímos em emoções, humores, paixões e descobrimos uma nova dimensão que, por mais que tentemos fugir, acaba nos levando para baixo, em direção ao mundo de nossas profundezas.
 (p.54)

Os alquimistas tinham uma imagem excelente para expressar a transformação do sofrimento e do sintoma em valor espiritual. Um dos objetivos do processo alquímico era a obtenção da pérola de raro valor. A pérola tem início com um fragmento duro, um sintoma neurótico ou uma queixa, um agente incômodo e irritante no ponto mais secreto de dentro da carne, do qual nenhuma couraça pode nos defender. Ele é recoberto e trabalhado dia após dia, até que o fragmento acaba se transformando numa pérola. Mas mesmo assim ela ainda precisa ser buscada nas profundezas e depois aberta para libertar-se. Quando, então, o gramento já se encontra redimido, pode ser utilizado como jóia. Deve ser conservado junto ao calor da pele para manter o seu brilho: o complexo redimido, e que antes causava sofrimento, surge agora aos olhos de todos como uma virtude. O tesouro exotérico, conseguido através do trabalho oculto, transformou-se em esplendor exotérico. Livrar-se do sintoma significa desperdiçar a chance de conseguir aquilo que um dia poderá ter grande valor, mesmo que de início se apresente sob uma forma insuportável, irritante e como algo baixo, disfarçado.
(p.57)

Familiarizando-me com meus sonhos, conheço melhor o meu mundo interior. Quem vive em mim? Por que, de repente, me afasto assim das coisas? O que é recorrente, e portanto, vive voltando para permanecer? São animais, pessoas e lugares, preocupações que me pedem atenção, querendo tornar-me seu conhecido e amigo. Pedem-me para cuidar deles e dar-lhes importância. Essa familiaridade, depois de algum tempo, produz a sensação de estar à vontade e em casa com uma família interior, o que nada mais é que a vida em comum e a comunidade comigo mesmo, num nível profundo do que também pode ser chamado de "espírito consanguíneo".
(p.58)

Os problemas morais constelados nos setores dedicados ao serviço de finalidades mais elevadas são mais espinhosos, sendo aqui a divisão entre o bem e o mal particularmente estranha. Parece que enquanto tentamos iluminar, buscar a verdade e fazer o bem, um lado oposto cresce com a mesma intensidade. É um fenômeno tão independente da intenção de nossa consciência, tão difícil de ser enfrentado com firmeza e igualdade que, gradualmente, uma dissociação acaba por nos dividir. Na melhor das hipóteses aguentamos a tensão, sofrendo a dor moral. Na pior, reprimos a ruptura e o mundo se ressente dela como hipocrisia e traição. Muito dificilmente se resolverá a divisão entre prédica e prática, consciência e sombra, força da loucura e força da sabedoria, escolhendo-se um em detrimento do outro.
(p.71)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Conversa fiada

A conversação ocidental atingiu o estágio de ritualização no qual a oração ora não mais sobre o inarticulável, mas sobre si mesmo. No presente estágio da conversação ocidental, o ritual da festa do pensamento tornou-se seu mito. A oração adora a si mesma e ora sobre si mesma. Os nomes próprios, à medida que aparecem, não são mais aceitos como mitos a serem ritualizados, mas como ritos a serem incluídos no ritual sempre crescente. O ritual é a finalidade da festa inautêntica que é a conversa fiada. A experiência exuberante e terrificante evaporou-se: a conversação tornou-se tediosa e nojenta, girando em círculos sem centro - não há significado. A conversação não ora sobre o inarticulável, mas sobre si mesma, procedendo à automitologização. Trata-se de loucura às avessas, justo que chamei de dúvida da dúvida na introdução a este trabalho. Nesse estágio da conversa fiada o intelecto torna-se autossuficiente, porque perdeu o seu centro, a saber, o inarticulável. Está afastado da proximidade. A conversa fiada é a profanação da festa do pensamento; na conversa fiada tudo é profano, portanto, nojento. O mundo da conversa fiada é um cosmos totalmente ritualizado e desmitologizado, calcado absurdamente no rito como mito. É a intelectualização total, que tem por consequência o abandono do intelecto esvaziado de seu teor festivo e tornado nojento.
A conversação científica atual é um belo exemplo dessa conversa fiada. A ciência não ora mais sobre a realidade, sobre o inarticulável, mas sobre si mesma. Os nomes próprios que a intuição poética verte sobre a conversação científica, como por exemplo meson e antiproton, não adoram mais o articulável, mas o ritual da conversação científica. A ciência tende a ser autossuficiente, logo, tende a ser nojenta. A experiência festiva tende a evaporar-se na conversação científica, que tende a mergulhar nan loucura às avessas da conversa fiada. A ciênncia duvida não mais da realidade, mas de si mesma: o ritual da ciência é o seu mito. A ciência está se afastando da proximidade do inarticulável, do de tudo diferente; a ciência está se profanizando. A ciência está virando dança sem centro e se afastando do significado. Nesse nível, a conversação ocidental encontra-se ameaçada de estagnação e de mutismo wittgensteiniano.
O que digo a respeito da ciência posso afirmar, com igual pertinência, a respeito da arte, especialmente a respeito da arte chamada abstrata. O rito torna-se mito, a arte se profaniza e torna-se nojenta. Com pertinência menor, mas com validade igualmente assustadora, o mesmo pode ser afirmado a respeito dos demais níveis da conversação ocidental da atualidade. Assistimos a um esvaziamento do caráter festivo do pensamento ocidental, a uma profanização desse pensamento, a um afastar-se do inarticulável. O pensamento ocidental está se afastando da proximidade do de tudo diferente, para girar sobre si mesmo. O espanto primordial, a prostração em face do de tudo diferente, a alienação do de tudo diferente de si mesmo que deu origem ao intelecto, estão toto coelo distantes do pensamento ocidental. O pensamento ocidental está mergulhando na conversa fiada.
O superintelectualismo e o anti-intelectualismo da atualidade são as consequências desse mergulho, mas não as únicas alternativas face ao presente estado das coisas (...).
Vilém Flusser, A Dúvida. Editora Annablume, 2011. P.102-104 

domingo, 26 de outubro de 2014

Nicola Samorì

L’oro galleggia. 2011, oil on copper, 100 x 100 cm

Nascido em Forli, no ano de 1977, o artista italiano Nicola Samorì traz de volta o estilo de pinturas antigas, como as barrocas e renascentistas. No entanto, seu trabalho figurativo propõe ainda a deformação e a intensidade passada pela imagem física e metafórica de seus personagens decepados. 

Segundo entrevista, Samorì trabalha com "as raízes do medo: medo do corpo, da morte, do homem". "Acho que minha natureza como artista é algo como se sentir sem esperança. As obras são abrigos temporários e pintar é um lazer no qual você pode se conciliar consigo mesmo", explica. O artista ainda acrescenta que os temas de seu trabalho são "planos de acumulação temporal que empurram a imagem até sua dissolução". Segundo ele, sua atenção está focada nos últimos momentos da obra, quando uma forma "exausta, no limite da beleza é imprimida nela". "Eu gosto de levar a imagem ao seu ponto de ruptura, colocando sua forma em perigo".

Quando perguntado se sua arte refletia um aspecto seu, Samorì respondeu que talvez ela seja um espelho inconsciente, uma espécie de exorcismo que retira ou dá forma às coisas com as quais você não quer conviver.

Sobre a relação com o público, o italiano julga ser importante ter o entendimento das pessoas, apesar de isso não ser vital. "Eu gosto das reações fortes: perturbações, [as imagens] entrando na cabeça das pessoas, mudando aqueles que entram em contato com uma obra minha mesmo em um período muito curto. É difícil se sentir totalmente compreendido, já que eu sou o primeiro que muda de ideia com relação à minha obra o tempo todo".

June27 – crowned. 2014, oil on copper, 1120 x 100 cm
Nubifregio. 2010, oil on linen, 200 x 150 cm
The Golden Child. 2014, oil on wood, 42 x 30 x 5 cm
Tower. 2012, oil on linen, 200 x 100 cm
Vertice (detail). 2013, bronze, oil, wood, 248 x 31 x 21 cm
Vomere (detail). 2013, oil on table, 201 x 70,5 x 73 cm
Jungle. 2013, oil on wood, 40 x 30 x 5 cm
Ogni Estasi è Indecente. 2011, oil on copper, 100 x 100 cm
S.G. 2011, oil on wood, 29 x 19 cm 2011
Irene scopre l’Informale. 2012, oil on linen, 200 x 150 cm
Shrine. 2012, oil on linen, 200 x 300 cm
Larvatorum, 2010, oil on copper, 70 x 50 cm
La Storia, 2009, oil on copper, 100 x 100 cm

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Inovação a partir dos jovens

"A sociedade dos antropóides avançados, assim, controla os indivíduos por meio de suas sujeições e de suas hierarquias, mas não uniformiza as individualidades e permite-lhes desenvolver relativamente suas diferenças. Quando a hierarquia é rígida e autoritária, só os privilegiados da cúpula, e até mesmo só o chefe, é que podem desabrochar sua própria individualidade.
Desse modo, sociedade e individualidade aparecem-nos como duas realidades, que são, ao mesmo tempo, complementares e antagônicas. A sociedade maltrata a individualidade, impondo-lhe seus estatutos e suas sujeições, e oferece-lhe, ao mesmo tempo, as estruturas que lhe permitirão manifestar-se. Utiliza, para sua variedade, a diversidade individual, a qual, se assim não fosse, se dispersaria ao acaso na natureza, e, por outro lado, a variedade individual utiliza a variedade social para procurar desabrochar. Assim, ao nível da sociedade primática, já não podemos apresentar a sociedade como um simples enquadramento e o indivíduo como uma unidade que se arruma numa estante, já que o enquadramento é constituído pelas relações interindividuais e já que não há estante vazia enquanto não houver indivíduo para ocupá-la. Por outras palavras - e isto é capital - sociedade e individualidade não são duas realidades separadas, que se ajustam uma à outra, mas há um ambissistema em que, complementar e contraditoriamente, indivíduos e sociedade são constitutivos um do outro, embora se parasitando um ao outro".
Edgar Morin, O Enigma do Homem, p.42-43. Editora Zahar (1979)

"O estudo contínuo dos macacos da ilha de Kyushu permitiu detectar alguns desses fenômenos. Um grupo de macacos que vivia na orla da floresta tinha o costume de se alimentar de tubérculos, que eles limpavam com a mão, depois de os terem desenterrado; acidentalmente, um jovem aproximou-se da margem e deixou cair um desses tubérculos no mar, apanhou-o e, assim, descobriu que a água do mar não só poupava a limpeza manual, como também apresentava a vantagem do tempero. Esse jovem adotou o hábito de molhar seus tubérculos no mar, sendo imitado por seus companheiros, mas não pelos mais velhos; contudo, o hábito generalizou-se no decorrer da geração seguinte. Os macacos, a paartir de então, ampliaram seu espaço social, incluindo nele a beira d'água, o que resultou na integração de pequenos crustáceos e mariscos na sua alimentação. O embrião de 'cultura' dessa sociedade, isto é, as práticas e os conhecimento de caráter não-inato, enriquecera-se. O processo de inovação viera de um jovem e espalhar-se rapidamente pelo grupo marginal dos jovens. Com a subida dos jovens para a classe dos adultos, a inovação integrada tornava-se costume, trazendo consigo uma série de pequenas inovações que também se tornaram costume. É certo que se trata de um fenômeno menor e as modificações desta ordem na vida social até mesmo dos primatas mais evoluídos são mínimas, sem dúvida, num mesmo nicho ecológico. Mas podemos ver que a existência do grupo dos jovens, curioso, brincalhão, explorador e, ao mesmo tempo, marginal e desviado, constitui, para a totalidade da sociedade, uma fronteira aberta, através da qual podem emergir elementos de mudança.
A fonte da mudança é, aqui, um acontecimento aleatório que, logo que seu caráter prático e agradável é apreendido, se transforma em inovação, a qual se torna progressivamente costume. As condições da inovação são comportamentos desviados, ao acaso, frequentes entre os jovens, isto é, do ponto de vista da integração social, é 'ruído' ou desordem. Nós podemos captar ao vivo a transformação de um 'ruído' em informação e, também, a integração de um elemento novo, fruto de um comportamento aleatório, na ordem social complexa. Estamos no limiar da evolução sociocultural".
p.47-48

domingo, 12 de outubro de 2014

Hackeando os programas flusserianos

Thiago Reis é autor do artigo "É possível hackear a existência?", publicado na 17ª edição do Flusser Studies. Nele, ele discute o papel do hacker como uma possibilidade de modificação da nossa existência (Dasein) conforme joga ou "hackeia" programas, isto é, aquilo que faz com que os aparelhos funcionem. 
Diante do tipo "funcionário", aquele que está submetido a um ou mais aparelhos, sendo ambos programados, o hacker age como uma espécie de revolucionário que visa quebrar essa lógica organizada por sistemas complexos e, muitas vezes, burocráticos, a partir de um jogo com o absurdo, em busca da liberdade.

"Cabe agora retomarmos a pergunta inicial, que toma sua forma fundamental: é possível hackear a existência? Ou seja, é possível quebrar e reorganizar os códigos aos quais estamos submetidos? É possível alterar o programa em execução de modo a fazê-lo funcionar em nosso benefício? É provável que sim, desde que joguemos com os programas em execução, na tentativa de esgotá-los em suas virtualidades, mas também na tentativa de criar certos bugs que quebrem a sua previsibilidade. A imprevisibilidade deve ser a meta. Certas habilidades técnicas são bem-vindas para que o “hack” ocorra. Mas, para nós, basta apenas uma simples mudança de posicionamento. Imaginemos um cenário possível".

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Morte e cultura. Como devemos sobreviver na memória dos outros

Read it in English

Na semiótica da cultura, o termo “texto” é utilizado para se referir a um conjunto de signos. Esse conceito é encontrado tanto  na obra do semioticista tcheco Ivan Bystrina quanto nos textos do teórico russo Iuri Lotman. Vou me focar principalmente na obra de Bystrina, inicialmente, e na aula que ele ministrou na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 1995, a qual foi transcrita e nomeada “Tópicos de Semiótica da Cultura”.

Nesse trabalho, o texto é indicado como um conjunto de signos que têm valor comunicativo e informativo, expressivo, emotivo, estético e social. Essa mesma noção também aparece na Semiótica da Cultura sob o nome de “imagem”, como já vemos desde o prefácio do livro Emoção e Imaginação (2014), organizado pelos professores Norval Baitello Jr. (PUC-SP) e Christoph Wulf (Freie Universität Berlin). É Baitello quem principalmente usa o termo imagem para se referir não apenas às imagens visuais, mas também às auditivas, olfativas ou até mesmo as imagens proprioceptivas (as imagens que temos de nós mesmos e as quais, segundo o pesquisador, são pouco estudadas).

Isto é, textos também não dizem respeito apenas à forma escrita e gramatical, mas também se refere a imagens, ritos, mitos, sons etc. E, segundo Bystrina, esses textos existem desde os estágios primordiais da humanidade, porém foram perdidos ao longo do tempo. Quer dizer, se o homem surgiu na África há 200 mil anos, mais tarde conquistando seu comportamento moderno (há 50 mil anos), fazem no entanto apenas 5.500 anos aproximadamente que a história passou a registrada. Dessa forma, não sabemos exatamente como se davam as dinâmicas de mímica ou como a fala surgiu entre os homens primitivos.

No entanto, foi encontrado na Turquia alguns vestígios de pólen que provieram das flores usadas pelos homens de Neandertal durante seus ritos funerários. Além deste texto primitivo, há ainda pinturas rupestres feitas no Paleolítico. Elas foram feitas em cavernas que, vale ressaltar, não eram utilizadas como moradia, mas como templos. Outras imagens também eram feitas em rochas, bem como esculturas eram confeccionadas a partir de ossos, chifres e outros materiais.

Portanto, Bystrina divide esses textos em três categorias: textos instrumentais, racionais e criativos e imaginativos. Os textos instrumentais dizem respeito ao cotidiano do homem, são extremamente pragmáticos e técnicos. Já os racionais dizem respeito às ciências  naturais, à matemática, por exemplo. Os textos criativos e imaginativos englobam mitos, ritos, ideologias, ficções e obras de arte.

Apesar de fazer essa separação, Bystrina indica que hoje em dia, principalmente, é difícil de encontrar um texto puramente instrumental ou racional. Ainda assim, há exemplos que são exímios textos instrumentais, como uma lista telefônica ou uma tabela de horários de trens e metrôs – ambos não demandam criatividade ou pedem por um maior raciocínio na hora de serem interpretados. Textos puramente racionais também podem ser verificados em teses e dissertações ou na matemática. Contudo, ainda no âmbito das ciências exatas, isto é, na Física, a Teoria da Relatividade não se encaixa apenas como um texto racional, uma vez que exige uma maior abstração para ser entendida – portanto, trata-se de um texto racional, mas também criativo e imaginativo.

O semioticista tcheco indica que os textos instrumentais estão presentes desde o início da humanidade e são essenciais para a sobrevivência da espécie. Já os racionais apareceram mais tarde, em civilizações mais avançadas como a Grécia e a China antigas. Os textos criativos e imaginativos, porém, são os que predominam na cultura humana e os quais dão sustento aos aspectos físicos, materiais e psíquicos do homem.

Por cultura, Bystrina entende um conjunto de textos, sendo eles obras de arte, mitos, rituais etc. Todos eles são organizados gramaticalmente a partir da língua e culturalmente. São eles que, como cultura, vêm com a função de superar o medo existencial humano. Ou seja, acredita-se que o homem seja o único animal ou ser vivo que tem noção de que irá morrer. Apesar de elefantes recorrerem a um cemitério de elefantes no fim de suas vidas, não quer dizer que eles estejam cientes de que irão morrer desde meados de sua existência. O homem, no entanto, ao aprender que irá morrer (Memento mori) acaba se vendo numa situação de horror à morte e de niilismo, o qual pode ser resolvido a partir de elementos culturais que darão um significado à existência, por exemplo.

Nesse sentido, Bystrina ainda faz uma outra divisão na ideia de texto a partir dos códigos, que podem ser primários, secundários ou terciários. Os primários dizem respeito especialmente ao âmbito biológico do ser humano, tal qual o código genético. Os secundários estão relacionados à língua, sendo uma possibilidade a gramática. Já os códigos terciários são aqueles que formam a cultura e eles aparecem, principalmente na cultura ocidental, ocidentalizada ou ocidentalizante, a partir de binômios. Esses dualismos geram uma oposição entre polos que, inclusive, carregam uma valoração. Assim, como indica Bystrina, torna-se mais fácil para o homem fazer suas escolhas.

Entre prazer e desprazer, saúde e doença, vida e morte, podemos encontrar uma desarmonia entre os polos – principalmente no caso vida e morte. Valorada negativamente de maneira muito mais intensa que o polo da vida, a morte gera uma assimetria pela sua inexorabilidade. Por isso, lembra Bystrina, é que em muitas culturas (senão todas) o homem está em busca da imortalidade. E para tentar superar esse desequilíbrio, os seres humanos acabam operando a partir da irracionalidade, sustentando-se em mitos, ritos, religiões e diferentes códigos terciários, textos de cultura. Nesse sentido, o homem acaba criando uma “Segunda Realidade”, como indica Bystrina.

Essa mesma noção aparece na obra do antropólogo Edgar Morin, inclusive com um nome parecido: Segunda Existência. Em O Enigma do Homem, o francês detalha essa noção de que o homem, em agonia diante da morte como algo inevitável, recusa-a e a transpõe para o nível dos mitos e ritos. Esses recursos são, aliás, muito bem trabalhados em seu livro O homem e a morte. E, nesse sentido, o homem acaba amenizando a assimetria criada e convive com os conceitos de vida e morte de maneira que um não anule o outro.

Morte como raiz da cultura
Seria possível, então, pensar a morte como uma propulsora, uma inspiração para que o homem crie cultura, a partir de mitos, ritos, imagens e diferentes textos. Ivan Bystrina não mencionou isso em sua obra, tendo incluído como raízes da cultura as quatro possibilidades: o sonho, o jogo, as variantes psicopatológicas e os estados alterados de consciência. No entanto, ao descrever o sonho, Bystrina menciona a mitologia grega, na qual o deus do sono é Hipnos, o qual é irmão gêmeo de Tânatos, deus da morte. Além disso, o então aluno de Sócrates, Xenofonte, costumava dizer que o sono era o momento, em vida, mais próximo da morte.

Outra questão levantada em Tópicos de Semiótica da Cultura é a dificuldade que as crianças, em sua primeira infância, têm de diferenciar o sonho da realidade, principalmente quando esse sonho é ruim. Isso faz parte do processo ontogenético humano e também, possivelmente, vai ao encontro da formação filogenética da espécie, uma vez que o homem, em seus primórdios, também não conseguia fazer essa diferenciação.

Mais um exemplo dado por Bystrina é o mito da criação dos aborígenes australianos, que acreditam que os primeiros seres desenhavam em rochas aquilo que sonhavam (plantas, animais etc), dando assim materialidade e vida a essas imagens internas. De maneira semelhante acontece no mito de Javé como um escultor de matéria-prima que, a partir de um sopro, confere vida aos objetos – isto é, dá-lhe o espírito. E o interessante é que o termo espírito vem do Latim spiritus, que significa sopro, respiração. O equivalente grego seria “pneuma”, que também está relacionado a vento, enquanto que no hebreu tanto a palavra para alma (ruach) quanto para espírito (neshama) também dizem respeito à respiração.

Nesse sentido, esses mitos contam a transposição de imagens internas (endógenas) para imagens externas (exógenas). Esse conceito é trabalhado principalmente pelo historiador da arte alemão Hans Belting e também faz parte do artigo de Norval Baitello Jr. em Emoção e Imaginação (2014) – o qual especialmente trata desse movimento interior e exterior.

Belting, aliás, em Antropología de la Imagen, menciona que nobres do século XV encomendava retratos seus na esperança de ter sua memória sobrevivente após a morte de seu corpo. Ou seja, a sua existência prosperaria num outro corpo, a imagem, que, para Belting, funciona justamente como um “segundo corpo”. Esse foi o mesmo intuito também de Francisco Sassetti, nobre italiano que encomendou a construção de uma capela que levaria seu sobrenome e se situaria em Florença. Philippe-Alain Michaud narra em seu livro sobre a obra de Aby Warburg, teórico da imagem alemão, que Sassetti encomendou painéis nos quais a sua história pessoal era relacionada à história de São Francisco. Essas imagens se encontram ao redor de seu túmulo e o de sua mulher. Para Warburg, inclusive, “os retratos na parede de sua capela refletem seu desejo de viver [Daseinswillen], o qual a mão do pintor obedece ao manifestar ao olho o milagre de uma face humana efêmera, capturada e afixada pelo seu próprio bem” (apud Michaud, 2004, p.114).

Capela Sassetti

De maneira semelhante ocorreu com os humanistas da reforma alemã que, conforme Belting discorre, confiavam em seus textos como uma forma de sobrevivência, de permanecerem vivos e lembrados a partir de suas obras, lidas futuramente por diferentes gerações. Alguns, contudo, ainda chegavam a encomendar medalhões nos quais seus rostos seriam registrados – foi o caso de Erasmo de Rotterdam.

Isso tem a ver com o que o pensador tcheco-brasileiro Vilém Flusser indicou em uma frase que se tornou também título de um documentário sobre ele: “We shall survive in the memory of others”. Ou seja, devemos superar a morte e sobreviver na memória dos outros, em forma de informação, de imagens endógenas. Em sua autobiografia filosófica, Bodenlos, Flusser comenta sobre sua amizade com o escritor brasileiro Guimarães Rosa e como este submetia seus trabalhos a traduções muitas vezes grosseiras (mesmo porque sua obra é cheia de regionalismos e neologismos difíceis de serem expressados em outras línguas). No entanto, é entendido que Rosa tinha medo da morte e de ser esquecido, por isso queria, de certa forma, a fama: desejava que cada vez mais pessoas tivessem acesso ao seu trabalho e, desse jeito, imortalizar-se culturalmente. Algo como o conceito de que “os símbolos vivem mais que os homens”, como indicou o comunicólogo alemão Harry Pross.

Não é à toa, aliás, que continuamos falando e estudando a obra e pessoas que morreram há muito tempo – por exemplo filósofos gregos. Artistas, cientistas, escritores que há muito se foram ainda permanecem “vivos” no âmbito da cultura e da informação. De forma parecida isso também acontece com celebridades, as quais tiveram sua existência e atuação ostensivamente reforçados pela mídia. Sempre presente na vida das pessoas a partir de notícias, fotos e vídeos, celebridades acabam se tornando imagens, como indica Christoph Wulf em seu artigo A criação mimética e a circulação de emoções: um estudo de caso, também inserido em Emoção e Imaginação. Lá ele discorre sobre o funeral televisionado de Michael Jackson e como as pessoas se emocionaram e também não queriam acreditar que o artista estivesse morto (assim como quando Elvis morreu e criou-se o bordão “Elvis não morreu”). 

No entanto, especificamente no caso de Michael Jackson, Wulf indica que a cerimônia fúnebre e toda a encenação ocorrida durante esse evento veio a funcionar como “uma tentativa dos vivos de fazer com que o falecido continue vivendo pelo menos por algumas horas e para se certificar em um ritual comum de que nós continuamos vivos” (Wulf, 2014, p.207). E Michael segue presente, da mesma maneira, em forma de imagem nos dias atuais – seja como holograma ou então como memória auditiva em publicidades tais qual a do celular Sony Xperia Z2.



De forma semelhante, esse processo também ocorreu com a Princesa Diana, que ganhou um filme biográfico em 2013, protagonizado por Naomi Watts. A obra fixa-se principalmente em como a cobertura midiática sufocava a personagem mesmo depois de Diana ter se separado e deixado de ser parte da nobreza britânica – ou seja, havia, de certo modo, deixado de ser celebridade. Mas os paparazzi não pensavam dessa maneira e a importunavam, perseguindo-a e não a dando o “direito ao esquecimento”. Nesse sentido, a mídia ou a cultura midiática pode se concentrar em práticas muitas vezes superficiais, como visto em tablóides, na busca de reforçar informações muitas vezes irrelevantes (vide manchetes e notícias do G1) mas que, de qualquer maneira, não deixa de ser consumidas por muitas pessoas – ou esses veículos e formato não persistiriam até hoje.

À esquerda, desfile da Alexander McQueen em 2007, ainda com McQueen como designer. À direita, desfile em 2010, sob o comando de Sarah Burton

Na moda, esse processo também se dá de alguma maneira, uma vez que grifes mantêm os nomes de seus designers mesmo depois de sua morte e procuram seguir o legado. Isso aconteceu quando o designer Alexander McQueen faleceu e Sarah Burton passou a liderar a marca que, no entanto, continuou com o nome do criador. Em uma entrevista à Vogue, em 2010, Burton mencionou que sua primeira coleção, feminina, iria levar o espírito e inspirar-se em McQueen, mas que ela daria os toques femininos que ele, como homem, não possuía. E é mesmo possível verificar essa aproximação nos primeiros momentos de Burton à frente da grife, mas conforme o tempo é possível perceber que ela realmente se afastou um pouco da estética original de McQueen, não chegando a ser tão conceitual ou mesmo criar peças tão fortes quanto às do designer original.

Portanto, a cultura segue como um ambiente de registros de informações que serão passados adiante ao longo da história, seja a partir de práticas ou de, literalmente, acesso às informações. Foi o que imaginou Vannevar Bush ao criar o projeto MEMEX, que desde seu nome já faz referência à memória (memory extension ou ainda memory index). Isto é, Bush propunha a criação de uma máquina na qual as pessoas poderiam acessar de maneira rápida e flexível todas os registros escritos, imagéticos, comunicacionais etc. Essa ideia ajudou a moldar as configurações dos computadores e dos hyperlinks. Mais tarde, isso seria aprimorado por Ted Nelson em seu projeto Xanadu, que foi assim nomeado a partir de um poema de Coleridge que fala sobre um lugar na memória literária no qual nada é esquecido.

Dessa forma, entendemos que há uma confiança na máquina como uma mídia de registro de informações e de acesso dinâmico a estas, assim desdobrando-se no funcionamento do computador, da Internet e, por consequência, as enciclopédias colaborativas (Wiki). Porém, alguns estudiosos com o alemão Dietmar Kamper apontam para a insegurança também presente mesmo nessas mídias, em seu artigo As máquinas são tão mortais como as pessoas. Quer dizer, apesar de ser possível restaurar ou conservar um quadro, eles também estão sujeitos à deterioração da mesma maneira que máquinas, cada vez mais obsoletas conforme a passagem do tempo. 

No entanto, é muito mais fácil de salvar essas informações, em âmbito digital, ou até mesmo restaurar objetos que estender uma vida humana. Esse é o projeto do pensamento transumanista: buscar a sobrevida humana seja por meio da transferência mental (a tradução da consciência em informação processável em computadores) ou ainda a eliminação do envelhecimento, como busca Aubrey de Grey.

Portanto, concluímos, principalmente a partir de Bystrina, que a cultura humana e suas criações, seus textos, funcionam como uma forma de tentar superar a assimetria da morte e de dar sentido à vida. Todos esses desdobramentos, sejam no âmbito da arte, dos rituais funerários, da mitologia, da mídia e mesmo o transumanismo seguem como textos de cultura que invariavelmente vão “brincando” com esse medo existencial.

Referências

BELTING, Hans. Antropología de la imagen. Buenos Aires: Katz, 2007
BYSTRINA, Ivan. Tópicos de Semiótica da Cultura. São Paulo: Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, 1995
BAITELLO Jr, Norval; WULF, Christoph (org.). Emoção e imaginação. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014
FLUSSER, Vilém. Bodenlos. São Paulo: Annablume, 2011
KAMPER, Dietmar.. As máquinas são tão mortais como as pessoas. Uma tentativa de excluir o telemático do pensamento. s/d. Disponível em <http://www.eca.usp.br/nucleos/filocom/traducao9.html>
MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg and the Image in Motion. Nova Iorque: Zone Books, 2004
MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. Portugal: Publicações Europa-América, 1970
___. O enigma do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1979

* Esse artigo é referente a uma aula-teste que apresentada na Esamc, em Sorocaba.

domingo, 5 de outubro de 2014

Jan Fabre

MERCIFUL DREAM (PIETÀ V), 2011

Jan Fabre é um artista belga conhecido por suas esculturas feitas em mármore e bronze, as quais trazem um tema mórbido e muitas vezes acompanhadas da representação de um crânio humano. Mas além desse formato, o artista também trabalha com ilustrações, filmes, performances e instalações, nos quais faz referências à vulnerabilidade do corpo e sua defesa, observando como o homem irá sobreviver  no futuro. Fascinado por corpos e por ciência desde a juventude, quando descobriu a pesquisa do entomologista Jean-Henri Fabre, Jan passou a estudar os insetos e outra criaturas, até mesmo chegando a dissecá-las de modo a transformá-las em outras criaturas. 

Metamorfose é a palavra-chave da obra de Jan Fabre, na qual a existência humana está em constante interação com a animal.


CHAPTER IV (2010)

CHAPTER VII (2010)

IN THE TRENCHES OF THE BRAIN AS ARTIST-LILLIPUTIAN (I) (2008)

I LET MYSELF DRAIN (DWARF) (I) (2007)

I LET MYSELF DRAIN (DWARF) (I) (2007)

I LET MYSELF DRAIN (DWARF) (I) (2007)

 THE MAN WRITING ON WATER (2006)

THE MAN WRITING ON WATER (2006)

GRAVETOMB (SWORDS, SKULLS AND CROSSES) (2000)

sábado, 4 de outubro de 2014

As esculturas de Kate MacDowell

Daphne, 12/2007

Feitas à mão e usando porcelana, as esculturas de Kate MacDowell trazem à tona algo além do belo na artes, ou como explica C.S. Lewis, numa citação que a própria artista escolheu para a descrição de seu trabalho: "Nós não queremos meramente ver beleza, apesar de essa ser uma recompensa suficiente. Nós queremos algo que não pode ser posto em palavras - unir-se à beleza que vemos, ultrapassá-la, recebê-la em nós mesmos, banharmo-nos nela, tornarmo-nos parte dela".

Por isso, suas esculturas têm o que ela chama de "ideal  romântico de união com o mundo natural em conflito com nosso impacto contemporâneo sobre o ambiente". E isso inclui a mudança dos efeitos climáticos, a poluição que nós produzimos e que atua negativamente na natureza. Inspirando-se na mitologia, história da arte e demais figuras notáveis ao longo da história, Kate antropomorfiza animais de modo a mostrar a fricção e o desconforto formado entre o mundo humano e o animal, provando que nós também somos vulneráveis e vítimas das nossas próprias práticas destrutivas.

Predator,  8/2013

Outfoxed, 6/2011

The god of change, 1/2011

Entangled, 6/2010

First and last breath, 1/2010

Romulus and Remus, 11/2009

Sparrow, 7/2008

Canary,  9/2008

domingo, 28 de setembro de 2014

Cappella Sassetti, the donor portrait and the survival in the image

Francesco Sassetti's tomb with Giuliano da Sangallo's reliefs in Cappella Sassetti, Santa Trinità, Florence

The custom of outfitting chapels inside a church and having Masses said for the family's dead first appeared in Tuscany at the end of the thirteenth century. The task assigned to Ghirlandaio, as one learns from a preparatory drawing preserved in the print collection in Rome, still shows a traditional Franciscan subject. It was clearly altered during its execution in the Santa Trinita chapel, in a composition organized around the tombs of Francesco Sassetti and his wife, a descendant of a family of Etruscan lineage, Nera Corsi, whom Francesco had married in 1459. Deviating from the cycle of Saint Francis as one finds it represented at Santa Croce - in Giotto's Bardi Chapel or in the marble reliefs for the pulpit in the nave, sculpted in the 1470s by Benedetto da Maiano - Ghirlandaio transposed episodes of the saint's life into a contemporary context and represented sites of the donor's activities in the background: the fabbriche of Assisi have been replaced by contemporary views of Geneva and Florence. The tombs of Francesco and his wife were inserted in semicircular niches, called arcosòli, or recesses, on the level of the frescoes and situated on the sides of the chapel at exactly the same height as the empty sarcophagus in the center of the painted Nativity on the panel above the altar. The deceased are depicted in full-length portrait, quite reduced - they measure about 3.9 feet - between the real tombs and the image of the empty tomb, making the scenography of the chapel suggest the assumption of the deceased bodies in the representation.

On the right-hand wall of the chapel, beneath the niche housing Sarsetti's tomb, a relief sculpted by Giuliano da Sangallo, inspired by a sarcophagus representing the death of Meleager, shows a corpse partially enveloped in a shroud and stretched out on a catafalque with torso half raised. To the left, a seated woman weeps, while two others, with hair in disarray, throw arms heavenward: together they express the two sides of grief, one melancholic, the other convulsive. The bas-relief, like a commentary, brings out the double continuity between Sassetti's tomb and the full-length portrait of him: it demonstrates the passage from physical death to survival in an image (the corpse rises, accompanied in its resurrection by the ecstatic transformation of the weeping woman into a maenad), giving Ghirlandaio's frescoes over these funeral reliefs and the tombs of Sassetti and his wife what Panofsky would call in 1964 the quality of an "exorcism" (Philippe-Alain Michaud. Aby Warburg and the Image in Motion, p.109-110).
The Confirmation of the Rule of the Order of Saint Francis
If one now considers The Confirmation of the Rule of the Order of Saint Francis in the chapel's lunette, which opens onto another Florentine setting (the Piazaa della Signoria), one understands that the empty tomb painted on the lower panel and the resurrected child on the middle fresco develop a common theme: they prepare and justify Sassetti's intrusion into the historico-legenday space of the upper fresco as a middle realm between the sarcophagus containing the patron's real body and his effigy. The tomb at the right of the chapel, which contains - or is thought to contain - Sassetti's real body, becomes the empty tomb of the Nativity, and the empty tomb in turn prefigures the resurrection of the child and Francesco's reappearance, above, in the real setting of the Florentine city. 
Francesco's entrance into the image echoes, in transfigured form, his body's entrance into the chapel. He takes his place in the painting with his entourage - his Umwelt - intruding into the sacred narration as wel as into the city's history, creating the conditions for his fictive appearence: "Neither loggia nor choir stalls, not even the balustrade behind the bench of Cardinals, can shield the pope and Saint Francis from the intrusion of the donor's family and their friends." The patron appears to bear witness, through his gesture of devotion, to a religious concept of existence, yet his effigy is first and foremost profane: he participates in the commemoration of the saint in order to give a lasting testimony of his person and his power. In making the comissio, Sassetti sought not to incorporate himself into the narration but to use to his advantage the field of representation in both its dimensions: the historico-referencial (the city of Florence) and the sacred (the legend of Saint Francis), Warburg removes Sassetti's mask of piety when he writes: "The portraits on the wall of his chapel reflect his own, indomitable will to live [Daseinswillen], which the painter's hand obeys by manifesting to the eye the miracle of an ephemeral human face, captured and held fast for its own sake."
The donor's image parasitizes the hagiographic sequence evoked by the saint's presence, reducing it to a secondary action and rendering it nothing more than the guarantee of the votive efficacy and legitimacy of the image. Sassetti, in having himself represented in the legend of Saint Francis and commissioning two tombs in a pagan style from Giuliano da Sangallo, responds to a very ancient survival rite running through the figurative apparatus of Christian belief. 
         (Philippe-Alain Michaud. Aby Warburg and the Image in Motion, p.111-114). 

Portrait of the Donor Francesco Sassetti

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Criatividade e autenticidade: da cultura à indústria cultural

Tenho relido textos da época da graduação, aqueles que eu havia tido contato nas aulas de Teoria da Comunicação no primeiro ano de Jornalismo. Alguns dos exemplos são os escritos "Comunicação de massa, gosto popular e a organização da ação social", de Robert K. Merton e Lazarsfeld, e "A indústria cultural", de Theodor Adorno. Nesses trabalhos há muitos conceitos que hoje, para a gente, são exagerados (maniqueístas) e até mesmo elitistas, mas certas coisas ainda fazem muito sentido, de alguma forma. 

Boa parte dos conceitos vistos nesses textos citados aparece novamente na opinião de Milton Santos, que faz questão de trabalhar justamente a diferença entre cultura e indústria cultural. Separei algumas citações do artigo que achei interessantes quando dizem respeito sobre a distinção entre o que é uma mercadoria cultural e o que seria realmente cultura.

Acredito que hoje já deve existir uma crítica sobre a estereotipação e o dualismo que sustenta esse conceito de oposição, mas não vou levar o post para esse lado. Vejo isso se refletindo atualmente no âmbito literário (apesar de ser frequente em diferentes áreas), quando discutem a oposição entre literatura de entretenimento e livros que, de fato, seriam obras de arte por não terem a função de ser mercadorias e sim a passar uma experiência estética, narrativa e linguística primorosa. No entanto, até que ponto o produto massivamente vendido e divulgado também não se debruçou na pesquisa e na técnica (mercadológica e que segue a moda/status quo de seu momento) e até que ponto a suposta obra de arte também não tem a pretensão de se tornar mercadoria (no sentido de promover retorno financeiro ao autor) e ser bem divulgada? Como mencionou Adorno, citando Benjamin (A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica): "A indústria cultural se define pelo fato de que ela não se opõe outra coisa de maneira clara a essa aura [da obra de arte], mas que ela se serve dessa aura em estado dedecomposição como um círculo de névoa".

Enfim... o meu ponto principal é levantar o questionamento especialmente àqueles que se dedicam à atividade intelectual e criativa e que já se sentiram encurralados pela pressão mercadológica (indústria cultural). 

(...) Hoje, a indústria cultural aciona estímulos e holofotes deliberadamente vesgos e é preciso uma pesquisa acurada para descobrir que o mundo cultural não é apenas formado por produtores e atores que vendem bem no mercado. Ora, este se auto-sustenta cada vez mais artificialmente mantido, engendrando gênios onde há medíocres (embora também haja gênios) e direcionando o trabalho criativo para direções que não são sempre as mais desejáveis. (...)
Nessas condições, é frequente que as manifestações genuínas da cultura, aquelas que têm obrigatoriamente relação com as coisas profundas da terra, sejam deixadas de lado como rebotalho ou devam se adaptar a um gosto duvidoso, dito cosmopolita, de forma a atender aos propósitos de lucro dos empresários culturais. Mas cosmopolitismo não é forçosamente universalismo e pode ser apenas servilidade a modelos e modas importados e rentáveis.
Nas circunstâncias atuais, não é fácil manter-se autêntico e o chamamento é forte a um escritor, artista ou cientista para que se tornem funcionários de uma dessas indústrias culturais. A situação que desse modo se cria é falsa, mas atraente, porque a força de tais empresas instila nos meios de difusão, agora mais maciços e impenetráveis, mensagens publicitárias que são um convite ao triunfo da moda sobre o que é duradouro. É assim que se cria a impressão de servir a valores que, na verdade, estão sendo negados, disfarçando através de um verdadeiro sistema bem urdido de caricaturas, uma leitura falseada do que realmente conta. (...)
Quem é gênio verdadeiro, quem é canastrão diplomado? Há quem possa ser gênio e mercadoria sem ser ao mesmo tempo gênio e canastrão, mas essa distinção não exclui a generalidade da impostura com que alhos e bugalhos se confundem. (...)
Como assegurar aos jovens que o seu esforço receberá, um dia, o reconhecimento? Esse é um grave problema do trabalho intelectual em geral e das tarefas especificamente culturais em particular, em tempos de globalização, sobretudo nos regimes neoliberais como o nosso.

Milton Santos. Da cultura à indústria cultural. 2000. Link 

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Revista Líbero 33A: "My art is not an answer, it is a question"

Foi publicada a revista Líbero, editada pelo programa de mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero, edição especial 33A. A revista, impressa e eletrônica, nesse volume traz artigos que foram apresentados no I Simpósio Internacional de Imagem e Inserção Social, ocorrido na faculdade no ano passado. Tive a oportunidade de participar do evento e apresentar meu artigo "My art is not an answer, it is a question". Uma análise do impacto das imagens de Gottfried Helnwein a partir dos casos da aquarela Life Not Worth Living e da instalação Selektion (Ninth November Night), o qual faz parte também dessa publicação - apesar de eles terem retirado o subtítulo.

Para ler o meu artigo, basta acessar o link.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Vilém Flusser, Wittgenstein e Kafka

"A um tempo com felicidade e com tremor a gente se reconhecia em Wittgenstein como um companheiro. Mas como companheiro que pertencia a uma geração precedente, e portanto com problemática diferente. Era irmão de Kafka, e o Tractatus era complemento de O processo. De repente tornou-se óbvio que Wittgenstein e Kafka exigiam, imperiosamente, respossta. Para se compreender isto, é preciso formular o que aqueles dois diziam naquele momento. No fundo reformulavam o problema kantiano da relação entre a razão pura e a razão prática de maneira violenta. Afirmavam que a razão pura é sistema fechado, absurdo e que gira em ponto morto em torno de um eixo, sistema este em aparente expansão, mas na realidade em constante retorno sobre si mesmo. E afirmavam que a razão prática é inteiramente inacessível à razão pura, que portanto não pode ser analisada, e que a "vida" consiste de vivência incompreensíveis, inexplicáveis, impensáveis e, em consequência, não-significativas. Em Wittgenstein isto se articulava pela afirmativa de que o pensamento puro resulta sempre ou em contradição ou em tautologia, e que é preciso calar-se quando se trata de "fatos". Em outros termos: que pensar, ler, escrever e falar são fugas rumo ao nada. Wittgenstein era positivista radical: negava que se possa pensar qualquer coisa positiva. Em Kafka o mesmo se articulava pela afirmava de que pensar é pecar porque gira em roda infernal, roda esta que não toca a realidade, a qual, em sua estupidez impensável, nos tritura. Em outros termos: toda tentativa de orientarmo-nos na realidade (tentativa à qual estamos condenados pela praga do pensamento) necessariamente acaba em desespero."
Vilém Flusser. Bodenlos, uma autobiografia filosófica. Páginas 57-58.
São Paulo. Editora Annablume.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Indiferença

"Era necessário distinguir as dimensões individuais das sociais. Ter perdido a pátria, a família e a posição não bastava, aparentemente, para destruir o fundamento. Era preciso também ter perdido o estudo da filosofia, a possibilidade de seguir a vocação de escritor, e a fé no marxismo. Só quando as duas componentes se juntam é que o fundamento cede. E quando isto se dá, é preciso que se esconda o novo entusiasmo que isto cria. O entusiasmo da observação distanciada. Não é a desvalorização dos valores, nem muito menos a transvalorização dos valores, mas a indiferença dos valores. Tudo é indiferente, portanto tudo tem o mesmo valor para ser observado. Isto entusiasma. Os nazistas são tão interessantes quanto as formigas, a física nuclear tanto quanto a Idade Média inglesa, o próprio futuro tanto quanto o futuro da parapsicologia. Isto lembrava Schopenhauer. Mas lembrava também a atitude científica e o inferno. Abria horizontes. Abria, por exemplo, a cultura inglesa e a americana, até então ignoradas. Mas abria mais radicalmente a convicção de que todo provincianismo é enquadramento. Não importa se praguense ou londrina, a gente é provinciana se tem fundamento. Mas quem foi arrancado da ordem vê o mundo todo."
Vilém Flusser. Bodenlos. Uma autobiografia filosófica. Pg. 44.
Editora Annablume.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Vilém Flusser: especialistas x generalistas

Em um ensaio pouco lido, publicado em 1991, Flusser estabeleceu de maneira cabal seu status como um praticante dos estudos culturais. Em "Äestetisches Erziehung" - "A educação estética" -, à página 124, o filósofo leva-nos a considerar o sujeito paleolítico que despertou para se tornar um uomo universale de modo que ninguém tivesse de se incomodar mais com a "divisão clássica entre os assim chamados três 'ideais': a verdade, o bem e a beleza".
Entretanto, com muito mais informação acumulada, o conhecimento do ser humano tornou-se especializado por padrão, e ninguém mais pôde ser considerado capacitado a ser "competente para a cultura inteira". Flusser não identificou especialização como um problema: a especialização seria necessária para facilitar o controle e a administração de massas de informação sobre a cultura. O que ele tinha era problema com a palavra "competente".
De acordo com Vilém Flusser, à página 126 do mesmo texto, generalistas devem ser educados com a ajuda de memórias artificiais, porque as metas da educação não são "filósofos contemplativos mas sim produtores ativos de informação nova, ou seja, participantes ocupados em acumular mais cultura". Referindo-se à estética como o ensino da experiência ("Erleben"), Flusser veemente advogou por um trabalho trans- e interdisciplinar, considerando-o como uma "criação dialógica e intersubjetiva".

Vilém Flusser: uma introdução - Vilém Flusser e os estudos culturais, de Anke Finger. Pg. 58
Editora Annablume. 2008.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O Amor em Tempos Tecnológicos: Ela na Solidão


Nessa segunda-feira, dia 11 de agosto, fui conferir na FEA-USP, o primeiro seminário do ciclo intitulado A Vida Hoje: Amor, Arte, Política, promovido pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. O debate O Amor em Tempos Tecnológicos: Ela na Solidão recebeu esse nome justamente por ser inspirado no filme Her (2013), de Spike Jonze. O longa foi debatido pelos professores Renato Janine Ribeiro (FFLCH), Massimo Canevacci (Università degli Studi di Roma La Sapienza/IEA) e Olgária Matos (FFLCH).

Canevacci foi o primeiro a expor sua opinião, comentando o aspecto metamórfico presente no filme como um reflexo da cultura e da tecnologia contemporâneas. Segundo ele, essa característica vem desde a cultura greco-romana, com suas mitologias, em que as identidades são mutáveis, e hoje vemos a transformação do corpo vegetal para o corpo humano e do corpo pixel. Desse modo, existe um desejo e uma complexidade em aceitar essa identidade, porque as dicotomias orgânico-inorgânico ou vivo-morto, por exemplo, já não funcionam mais: vivemos além disso.

A prática e a poética atuais pedem por algo além dessa dicotomia, o que Canevacci chama de metafetichismo ou fetichismo digital, uma das correntes que ele vem estudando desde sua obra Fetichismos visuais (Ateliê Editorial, 2008). E essa palavra não vem a acarretar algo perverso, numa conotação freudiana, como o palestrante lembra, mas uma metodologia indisciplinada e que, após a metamorfose, traz desdobramentos como o pós-humano. Isto é, o momento em que o corpo e a tecnologia não podem mais ser enfrentados de maneira clássica.

Para Canevacci, o pós-humano não perdeu a identidade tradicional, mas trouxe mudanças e estas são o desafio que ele propõe: a complexidade digital, o mal-estar da civilização. Her aborda algumas dessas mudanças, cruzando disciplinas e fazendo a relação bodyscape x landscape x voz. Isto é, a relação do rosto de Theodore (Joaquin Phoenix) x Los Angeles (amor à metrópole) x Samantha (voz de Scarlett Johansson).

Há um choque entre o material e o imaterial, entre a fascinação erótica e o corporal, principalmente quando Samantha resolve contratar uma prostituta para intermediar o relacionamento entre os dois e torná-lo corpóreo. O ponto é que, como Canevacci explicou, o fascínio travado entre os personagens vai além do amor e do sexo, mesmo porque, quando Theodore descobre que Samantha possui mais de 800 namorados, o relacionamento desmorona. "Percebam que o título do filme é 'Her' e não 'She', então é um objeto", comenta o professor. E assim como HAL, de 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick - o qual inclusive compartilha um nome de três letras e iniciado por "H" -, ambos têm que morrer... Mas por que? Segundo Canevacci, tudo isso está associado ao mal estar da civilização.

A tecnologia tenta criar uma racionalidade que nada mais é que a sua própria racionalidade. Ou seja, quando uma tecnologia é pensada, ela é desenhada apenas para ser produtiva, mas nunca sensível ou intuitiva, criativa, artística. Para Canevacci, essas características são cortadas por motivos civilizadores.

De acordo com Canevacci, se por um lado Theodore ama Samantha pela sua ubiquidade, isto é, por estar sempre disponível, sempre presente e ao seu lado e por nunca deixá-lo, por estar além da morte, por ser capaz de servi-lo com uma paixão imortal e ubíqua, em algum ponto, isso, no entanto, é censurado pela civilização ocidental.


Educação sentimental

Renato Janine Ribeiro se focou em como Her propõe ser um filme de educação sentimental, isto é, sobre amor e amizade, sobre relacionamentos. Em primeiro lugar, fazendo comparação aos romances do século XIX, como os de Stendhal e Flaubert, o professor ainda comentou sobre o difícil relacionamento de Amy e seu marido e como eles finalmente se separam diante das diferenças. Em seguida, Ribeiro dissertou sobre o significado dos nomes dos personagens principais, mesmo que Jonze talvez tenha os selecionado por acaso.

Theodore seria a "dádiva de Deus" enquanto Catarina, sua ex-esposa, tem algo a ver com "os puros". Nesse sentido, o protagonista saltaria de um relacionamento sagrado para algo novamente etéreo, sem corpo, como é o caso de Samantha, um sistema operacional (OS) que se resume à voz e que, de acordo com seu nome, significa "quem escuta" - justamente porque é isso também o que melhor faz. Mas Ribeiro lembrou que a primeira atriz que faria a voz da personagem se chamava Samantha, então talvez a escolha do nome não seja assim tão pensada, assim como a de Amy, que significa "amiga", mas que é interpretada por uma atriz chamada Amy Adams.

De qualquer maneira, existe um aprendizado sentimental tanto por parte de Theodore quanto por parte de Samantha, que é um software que evolui como se tivesse um corpo e uma alma. E ela faz isso a partir da relação sexual, tornando-se extremamente customizada. Seu papel na história, segundo Ribeiro, é como um anjo que traz uma boa nova, como um "HAL que vence". E o filme passa a ser sobre as diferentes formas do amor, as quais Ribeiro listou como: filia, eros, pathos, ágape, pragma e ludos. No caso, Her estaria mais para filia e eros, estando estas relacionadas ao amor amigo e ao amor carnal.


Utopias e distopias

Olgária Matos iniciou sua fala comentando sobre a paisagem do filme Her, a qual chama muito a atenção do modo que retrata uma Los Angeles do futuro próximo ao mesmo tempo que usa takes em Shanghai. A professora declarou que as cenas a fizeram pensar em Alphaville por seu aspecto inabitável, transparente: uma paisagem lunar que retrata a utopia da ubiquidade. "Onde estamos quando estamos em todos lugares?", ela perguntou.

Para Olgária, Her trata do mito do amor romântico a partir de um personagem muito delicado, mas retomando narrativas como a do Banquete de Platão, em que há a versão trágica do amor e da separação dos amantes; de Orfeu e Eurídice; de Don Juan. Diferentes versões do amor, todas elas buscando um mesmo desejo pela unidade que, na obra de Spike Jonze, vem como uma voz, assim como Deus apareceu para Moisés. E Olgária recordou uma passagem de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, em que um personagem ouve a voz da vó pelo telefone e assemelha aquele som, à distância, com a morte, com a iminência da perda. E aí estava já, como relacionou a professora, a tecnologia.

Porém, no caso desse livro, havia ainda recursos para se construir uma imagem, enquanto que no filme a presença não é fantasmada. E para presentificar o ausente com a forma digital, explicou Olgária, há o autômato, que vem a ser uma criação do homem, uma autonomização da máquina e uma visão do universo como um relógio. A partir daí, a tecnologia já não é mais vista como uma maneira de se aperfeiçoar os defeitos dos humanos, mas um meio de criação. E assim como Heidegger pontuou, recorda Olgária, a ciência e a tecnologia não pensam, elas fazem e desfazem a fronteira entre o lícito e o ilícito, o real e o imaginário.

Fobia do contato

Olgária mencionou o trabalho de Theodore como escritor de cartas e o emprego das palavras como um invólucro da alma, como um mediador do contato. Sem aquelas cartas, muitas pessoas teriam ainda mais problemas de relacionamento com suas namoradas e esposas, parentes e amigos. O protagonista é responsável por aliviar essas tensões através da escrita e não do contato. Ele tem problemas com isso e, inclusive, não consegue manter um relacionamento com a personagem interpretada por Olivia Wilde.

A professora refletiu sobre o poder ameaçador da massa e sobre a perda da identidade quando dentro dela. Existe, portanto, a fobia do contato e a voz se torna perfeita para a paixão, justamente por não ser necessário nenhum toque físico ou enfrentamento social. Mas Olgária acabou interpretando que quando Samantha e todas as OS se despedem de seus donos e Theodore e Amy se sentam juntos, ao fim do filme, é porque eles também irão se dar uma chance como um casal - interpretação que talvez alguns possam não ter tido.

As perguntas foram abertas àqueles que estavam assistindo à palestra através da internet e também aos que participaram do evento na FEA, sendo que a maioria das questões girou em torno da noção de afetividade.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A pensar: Sobre a conversação ocidental

"Estamos conversando sempre mais rigorosamente sobre sempre menos - e estamos conversando não para conversar, mas sim para polemizar. Não somos críticos, mas propagandistas. Com efeito, a conversação ocidental não se está desenvolvendo, mas se propagando na direção do mutismo".
Vilém Flusser - A Dúvida (Editora Annablume, 2011, p.110)

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Vilém Flusser: A Dúvida (Nome próprio, ameba e Deus)

No capítulo "Do nome", no livro A Dúvida (2011, Editora Annablume), Vilém Flusser já se antecipa dizendo que irá se preocupar nas próximas páginas em fazer uma reflexão sobre o intelecto e suas limitações, tratando da valorização excessiva do mesmo, "acompanhada do desespero quanto à capacidade do intelecto de pôr-nos em contato com a realidade".

Apesar de o intelecto ser a nossa "única avenida de acesso à realidade", esta passagem está, no entanto, de acordo com o autor, interditada por um processo de intelectualização do intelecto - a chamada "dúvida da dúvida", que é responsável pelo niilismo no qual nos encontramos.

Para superar esse estágio, em vez de abandoná-lo, poderíamos então passar a analisá-lo. E, ao fazer isso, descobrimos que o intelecto possui fronteiras, as quais nada têm de misterioso, místico ou sagrado: 

"As fronteiras que barram o avanço do intelecto rumo à 'realidade', rumo a 'Deus', não são arcanjos de espadas flamejantes a serem vencidos em luta, nem são fúrias infernais a serem encantadas orficamente. Essas fronteiras são algo muito prosaico, a saber: os nomes".

Segundo Flusser, "as últimas fronteiras do intelecto, o ponto no qual o intelecto para e deixa de funcionar, são nomes de um certo tipo, chamado 'nomes próprios'". Desse modo, as palavras podem ser classificadas em dois tipos: nomes próprios (palavras primárias) e palavras secundárias (todas as demais palavras). 

Enquanto nomes próprios são palavras que muitas vezes chegam até mesmo a pedir por gestos para podermos expressá-las, as palavras secundárias são facilmente ditas, conversadas - daí a diferença. Diz Flusser que os nomes próprios, ou as palavras primárias, são palavras chamadas, enquanto que as palavras secundárias são palavras conversadas.

De qualquer maneira, um nome próprio pode se tornar uma palavra secundária - um substantivo, por exemplo. Ele pode se concretizar. Para explicar melhor o que quer dizer, Flusser usa como metáfora uma ameba. Ao emitir um pseudópode, ela captura algo extra-amébico e o ocupa, trazendo-o para a realidade amébica e formando um vacúolo ao redor daquilo. Esse objeto passa a fazer parte da ameba sem que, no entanto, esteja incorporado ao seu metabolismo. Conforme o vacúolo se fecha, aquilo que foi absorvido é gradativamente transformado também em ameba, em protoplasma e, consequentemente, em realidade amébica. 

E, nesse sentido, o pseudópode faz a atividade do chamar enquanto o vacúolo corresponde ao nome próprio; o objeto ao ser absorvido se relaciona ao significado extralinguístico do nome próprio e a digestão do mesmo se trata da conversação. Já a ameba, segundo Flusser, é a língua como um todo e, levando-se em conta sua anatomia, composta de vacúolos e protoplasma, estes correspondem à classificação das palavras, entre nomes próprios e palavras secundárias.

Ainda nessa metáfora, o ambiente em que a ameba se situa, o território externo à ela, onde emite seus pseudópodes, é, para Flusser, o "vir-a-ser da ameba. A ameba é a realização, por protoplasmatização desse território. A ameba se expande para dentro de suas potencialidades, que são, do ponto de vista da ameba, vacúolos em statu nascendi". Mas se, no entanto, a ameba capturar um cristal de quartzo, ela até é capaz de encapsulá-lo em seu vacúolo, porém não conseguirá digeri-lo. "Todas as contrações do vacúolo resultam em vão, o cristal continuará sempre como um corpo estranho dentro do protoplasma da ameba. O melhor seria expeli-lo, a não ser que o cristal sirva, justamente, por ser o corpo estranho, de estimulante ou catalisador dos processos metabólicos da ameba".

Trazendo isso para o aspecto humano e o campo do intelecto, Flusser diz que a "a língua pode emitir os seus chamados para dentro do seu vir-a-ser, que são os nomes próprios in statu nascendi, em todas as direções possíveis" (assim como a ameba) - tudo é possível de ser chamado e todos esses apelos resultarão em um nome próprio.

"Podemos dizer que tudo pode ser apreendido pelo intelecto. Entretanto, nem tudo pode ser transformado em palavra secundária. Nem tudo serve para ser utilizado como sujeito e objeto de uma frase significativa. Nem tudo pode ser assimilado à engrenagem da língua. Nem tudo pode ser compreendido. Os nomes próprios inassimiláveis continuarão sempre como corpos estranhos dentro da estrutura da língua, continuarão sendo apelidos. Um exemplo típico desses apelidos, desses nomes próprios inassimiláveis que são apreendidos sem jamais serem compreendidos, é a palavra Deus. Como a estrutura química do protoplasma da ameba se recusa a assimilar um cristal de quartzo, assim a estrutura das nossas línguas se recusa a assimilar a palavra 'Deus'. Não obstante, justamente por ser inassimilável, pode, talvez, servir de catalisador dos processos linguísticos autênticos. Pode estimular a conversação, sem jamais poder participar autenticamente dela".

Isto é, apesar de Flusser acreditar que podemos apreender tudo através do intelecto e transformar tudo em nome próprio (dar nome a tudo, ser capaz de chamar tudo), nem tudo é possível de ser apreendido, ser conversado, ser transformado em palavras secundárias ou conversação. Assim como a ameba é capaz de capturar um cristal de quartzo, mas não o digere, nós também conseguimos capturar a noção de Deus, mas não conseguimos digeri-la. Mesmo assim, conseguimos conversar sobre isso, porém a conversa nunca é realmente autêntica porque nunca realmente digerimos o nosso cristal de quartzo chamado Deus. Estamos sempre comendo pelas bordas.

"Eis uma nova limitação do intelecto que surge à tona. Embora tudo possa ser chamado de nome próprio, embora tudo possa ser apreendido, pelo menos em teoria, nem tudo pode ser compreendido pelo intelecto. Nem tudo pode ser conversado. Chegamos a essa conclusão não por alguma especulação mística, mas pela observação intraintelectual de corpos estranhos que são os nomes próprios inaplicáveis a frases significativas. Não podendo servir de sujeitos e objetos de frases significativas, não se transformam estes nomes em palavras secundárias e continuam apelidos, isto é, símbolos sem significados, símbolos vazios. Não obstante, podem ter importância, às vezes decisiva, para o processo intelectual".

Por mais que esses nomes sejam símbolos vazios ou simplesmente apelidos, os quais até mesmo se desdobram em diferentes nomes (os nomes de Deus), eles continuam fertilizando processos intelectuais, múltiplas culturas e sociedades em torno disso.

Eu ainda estou fazendo minha leitura desse capítulo e também do livro, mas certamente Flusser teve contato com a obra de Wittgenstein para se inspirar nessas ideias que já vêm desde o capítulo anterior, quando ele já falava sobre palavras e realidade. Mas acredito que essas questões sejam ainda mais discutidas em Língua e Realidade (1963), porque A Dúvida é um livro originalmente publicado em 1999, sendo uma publicação póstuma, no caso - não sei quando foi escrito de verdade.