quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Urso Morto

Acabei de conhecer esse projeto brasileiro chamado Urso Morto, apresentado por um colega do Twitter que dizia que lembrava o trabalho do Hermann Nitsch, o que é verdade em certo ponto (o uso dos esguichos de sangue, de vísceras em instalações etc), mas, sinceramente, na minha opinião, eu diria que isso aqui é ainda mais bonito... Talvez pelo fato da proximidade, mas a narrativa dele me tocou bem mais do que a do vienense. Bem, mas para vocês concordarem ou não, tenho que apresentá-lo.


Fabrício Bambratti é o artista plástico por trás do apelido Urso Morto. Sua fixação pela morte é o mote que dá ritmo ao seu trabalho abrangido em diferentes formatos e técnicas, superfícies e abordagens, mas sempre deixando um rastro de sangue que sabemos bem de onde vem e para onde vai: do Brasil ao Brasil. Em palestra no Festival do Centro Cultural São Paulo, em setembro deste ano, o artista comentou que, desde muito novo, já refletia sobre a morte, entendendo-a já como uma questão primordial da vida e como algo que as pessoas não sabem lidar muito bem.


Assim, sua curiosidade o encaminhou à área da psicanálise, a qual o ajudou a entender um pouco mais sobre o tema que, enfim, tornou-se emblemático em seu trabalho artístico. Mesmo sabendo que poderia ser rejeitado pelo público, procurou ajuda da família, de origem simples, que também nunca esteve de acordo com essa sua forma de expressão. "Eles acham tudo muito estranho, desconfiam que eu não sou normal. Meu avô era encanador da General Motors, meus pais nunca foram a uma Bienal ou exposição, não entendem meu trabalho e têm certeza de que eu nunca vou ganhar dinheiro com isso", comentou Urso, em texto escrito por Laís Prado.

O desafio, então, era maior. Além de precisar cativar o público, ele também deveria encontrar uma forma de convencer a família ou de fazê-la enxergar o significado da arte, principalmente a sua. "Em geral, o artista acaba ficando dentro de um ciclo restrito e não consegue atrair a atenção da maioria para um trabalho mais conceitual, sem atrativos estéticos. Então, resolvi fazer um filme mostrando elementos criados por mim e inseridos no ambiente simples da casa da minha família. Como eles continuam sem entender e gostar do meu trabalho, nunca assistiram ao vídeo, mas eu não desisto", confessa Urso.


Vídeo gravado em Juazeiro do Norte, no interior do Ceará. Segundo Urso, lá, longe de suas referências, ele finalmente encontrou gente que não tem contato nenhum com a arte padrão e, por isso, faz do seu jeito

Nessa mesma palestra que deu ao CCSP, Urso vestia uniforme de atendente do McDonald's, lugar onde trabalha(va) de madrugada. Ele ainda não consegue obter lucro com suas obras, tanto que as faz gratuitamente. "Para melhorar minha situação financeira, fui procurar um emprego e acabei conseguindo uma vaga no McDonald's, na loja da Henrique Schaumann. Infelizmente, observo que as pessoas lá não estão felizes com o que fazem, mas elas continuam no mesmo lugar porque o trabalho é uma forma de segurança. Mas acho que elas sentem o trabalho como uma maldição e não conseguem extrair felicidade dele. Isso não deixa de ser a morte de uma vida melhor", conclui.

Cleide Riva Campelo é responsável pela organização de um livro de Dietmar Kamper chamado "O Trabalho como Vida", publicado pela editora Annablume. Neste, vemos a reflexão sobre o trabalho ao longo da história e como ele se infiltra na vida humana, desfazendo os limites. Mais especificamente sobre trabalho e morte, há o artigo "O trabalho entre a vida e a morte", do Prof. Dr. Norval Baitello Jr.

O mais impactante, para mim, são justamente os vídeos. Esse que coloquei acima foi o que mais me marcou. Além de uma narração em off em tom macio e ao mesmo tempo frio, os efeitos visuais inseridos na gravação dão um aspecto de filme velho e queimado, de um meio termo entre o real e o etéreo, trazendo a cor ocre do sertão e aflorando as minhas reminiscências de histórias que se passam nesse cenário - por exemplo, o livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, onde a sombra da morte também circunda tão forte quanto na obra de Urso Morto. Mas, principalmente, o que mais enriquece essa peça audiovisual é o fato de ela não só ter valor estético como também trazer uma mensagem extremamente forte e sensível aos que conhecem a realidade brasileira, que é apresentada em rápidos vídeos esmaecidos, como trechos de reportagens. A teoria de Pedro sobre as sete mortes é uma poesia genuinamente nativa e suas representações gráficas são tão fortes quanto o reflexo desses motivos nos arredores da personagem.

"Brasil velho sem porteira"

Vendo essa imagem, essa montagem, é inevitável lembrar da canção interpretada por Zé Ramalho, Admirável Gado Novo. Fazendo menção ao livro Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, a música traz o tom distópico da obra literária à melodia que trata de um país que nada mais é do que, enfim, uma distopia, no fim das contas. Fora isso, a trilha sonora dos vídeos de Urso Morto são, justamente, canções brasileiras. Nada mais justo.

Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber...
E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer...

E assim segue uma cultura que, enfim, pode não estar dando à arte a sua devida importância, como sugere Urso Morto e como eu também sugeriria. Pelo menos não a todos os tipos de arte, tendo em vista a vasta gama e diversidade de manifestações dentro do país. Todo mundo sabe que o Brasil não é só carnaval, funk carioca e futebol - mas também isso. Que o país e suas belezas ou mazelas podem ser apresentadas muito além do clichê do sertão ou da favela, que podem trazer uma narrativa mágica como a de Pedro ou como, por exemplo, o filme Abril Despedaçado, de Walter Salles.

Termino o post, então, deixando esse "flagra" gravado pelo próprio Urso Morto. Percebam bem a reação da mulher, proprietária da residência. Como ela vê o grafite e como ela reage diante da figura gravada em seu muro. Algo que me fez lembrar a reação de outrém diante da ação coletiva de grafiteiros no túnel da Avenida Paulista, em comemoração ao centenário japonês.



Urso Morto: 

REFERÊNCIAS

PRADO, Laís. Novo Festival do CCSP. Urso Morto veste uniforme do McDonald's em palestra. CCSP. 2012. Disponível em: <http://ccsp.com.br/ultimas/60228/Novo-Festival-do-CCSP>

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