quinta-feira, 19 de abril de 2012

Flusser: ideologia como forma de fascismo

Vilém Flusser

Ricardo Mendes é autor da dissertação "Vilém Flusser: uma história do diabo" (2000), pela Escola de Comunicação e Artes da Universidadede São Paulo (ECA-USP). Em seu trabalho, ele conta a história do filósofo tcheco-brasileiro, o qual contribuiu muito com o pensar a comunicação, desde as imagens (Filosofia da Caixa Preta) à escrita (Língua e Realidade), além de temas existencialistas e fenomenológicos. No capítulo "Praga, a cidade", Mendes inclui o depoimento da advogada Maria Lilia Leitão, que relembra a descrição que Flusser fez à lembrança de quando o Hitler chegou em sua cidade natal.

"Eu lembro que o Flusser relatou isso numa das reuniões da casa dele para nós, com toda a emotividade dele, de um tcheco - porque o Flusser também era um grande ator, tudo que ele falava, ele punha tanta emoção e relatava as coisas também com um certo rigor e com um certo exagero também, de bom ator. Ele contou isto, que ele tinha 15 anos*, quando ele assistiu a entrada triunfal do Hitler com as tropas nazistas, os SS em Praga. Ele estava saindo da escola, passou pelo caminho para a casa numa praça, a praça principal da cidade e viu aquela arrumação fantástica, aquelas bandeiras vermelhas, aquela coisa iluminada, o palco, não sei o quê, o agito todo, a orquestra sinfônica e ele: “O que é isto?”. E de repente ele se pôs na multidão, bem perto ali do palanque e ele conta que ele nem sabia quem era o Hitler, ninguém podia imaginar quem era, mas a sensibilidade do Flusser era tão grande de ver as coisas, a realidade, ele tinha um olho diferente. Quando ele viu aquilo ele sentiu calafrios. Por que? Primeiro aquele aparato teatral, fantástico, digno de uma ópera wagneriana: Em plena praça pública aqueles Rolls-Royces, aquela coisa, aquela tropa SS, ele descrevia - todos de 1,85m, numa mesma altura, homens do tipo ariano puríssimo, lindos, jovens, com aquele uniforme da SS que era todo preto, botas de verniz preto até aqui. Olha como eu lembro dos detalhes! Eu nunca vi isso, o Flusser me contou: aqui tinha uma caveira em prata, aqueles botões em prata e o quepe alto também com a caveira que era o símbolo da SS, luvas brancas, marchando com aquele passo de ganso e chegaram no palanque. No palanque, então, tinha a orquestra sinfônica, imagina, essa orquestra maravilhosa começou a tocar Wagner. E aí que é que acontece? Chega um Rolls-Royce - que está todo já o aparato feito - (...), abre-se a porta do Rolls-Royce e um homem baixinho, desse tamanhinho, de capa de chuva, despenteado, com aquele bigodinho, com um cigarrinho aceso e entrou para o palanque escoltado por doze homens lindos da SS. Ele falou: “Aquilo era de um ridículo! - e quem é esse homenzinho?”. E aí o cara chega e aquela multidão fanática: “Heil Hitler! Heil Hitler!” E ele falou: “Olha, eu não sabia o que era aquilo, mas eu posso dizer para vocês que eu tive um prenúncio de uma coisa terrível, satânica. E eu pensei, mas o que esse homem vai falar deve ser, assim, a mensagem das mensagens para o século... Eram frases pequenas, curtas, mais slogans. Então ele não tinha pensamento nenhum: “A raça ariana dominará o mundo...” e todo o mundo: “Heil Hitler! Heil Hitler!” E aí: A Alemanha vai se levantar...então era um... quer dizer, não era nada, era tudo teatro.
O Flusser foi um dos grandes críticos do nacional-socialismo, de todos os tipos de fascismo e nazismo que ele falava de uma forma visceral e tudo que podia ter uma semente de ideologização e de autoritarismo e de falsidade e de manipulação do indivíduo ou do social e do coletivo para ele era taxado tranqüilamente de fascismo e nazismo. Isto é... até pelas cartas dele ele era assim muito claro, ele dizia: “Qualquer coisa neste sentido isto é ideologia e toda ideologia está manchada, tingida de fascismo e de nazismo”. E eu discuti isso muito, porque eu achava isso uma coisa muito radical; eu tive vários diálogos com ele lá na França: “Mas Flusser, você não pode dizer isso, isso é uma coisa pessoal sua, porque você teve todos os dados biográficos, você viu o Hitler, a sua família toda..., mas você não pode dizer que toda a ideologia é fascista, é nazista, é uma forma de nazismo.” Ele me explicou muito bem e hoje eu concordo plenamente com o Flusser, porque ideologia para ele o que era? Era um ponto de vista, parcial, abusivo, tendencioso e que não admite outros pontos de vista. Ele dizia: “A filosofia é exatamente o contrário da ideologia. A filosofia é você ter um ponto de vista e buscar outros, tantos quantos ou mais forem possíveis de se pensar a respeito daquele problema, daquela questão. A ideologia não. Ela é... por isso que toda a ideologia leva a um fanatismo, porque é uma visão parcial”. Então, realmente, é o nazismo fascismo por excelência, não é? Você manipula os outros através da sua ideologia, porque passa a ser a sua a ideologia de tal grupo, a ideologia de esquerda, a ideologia de direita - “Isso é indigno de um intelectual” - dizia o Flusser. 
* A entrada de Hitler em Praga ocorreu em 15.03.1939, quando Vilém Fluser tinha 18 anos,conforme indica (RYBÁR, Ctibor. Jewish Prague: guide to the monuments. Czechoslovakia:TV SPEKTRUM, 1991, p.115), sendo recebido por parada de estudantes. Existe confirmaçãoda saída de Flusser de Praga, no mesmo mês, sem precisar dia, em carta de Flusser, datadade 19.02.1985, a Daniela Mrazkova e Vladimir Remes. 
(MENDES, 2000, p.6-7) 

Flusser teve pais, irmãos e avós mortos, em 1940, num campo de concentração. No ano seguinte, sua mulher e ele fugiram da Europa e vieram para o Brasil, tendo se naturalizado brasileiro em 1950. Aqui, o filósofo se aproximou de Dora Ferreira da Silva, poetisa, tradutora e estudiosa de Carl Gustav Jung.